05/10/09

Livros no Bolso - XIV


Leite Derramado
Chico Buarque
Dom Quixote, 2009

Todos o conhecemos das suas canções. Os que atentavam nas letras dessas canções, conheciam já o seu lado poeta, mas só recentemente este herói das artes assumiu o papel de escritor. Chico Buarque, ícone máximo da música popular brasileira, músico, cantor, compositor, letrista e escritor, brinda-nos aos 65 anos com o seu quarto romance, “Leite Derramado”.


Tendo começado por escrever para o teatro, em 1974 Chico Buarque publica “Fazenda Modelo”, uma novela em forma de fábula sobre o Brasil no tempo da ditadura. “Estorvo”, de 1991, é tido como o seu primeiro romance, ao qual se seguem “Benjamin” (1995) e “Budapeste” (2003), que viria a marcar o seu êxito como romancista do lado de cá do atlântico (aliás, um romance excepcional, com presença obrigatória num próximo Livros no Bolso).


Sobre “Leite Derramado” já muito se ouviu dizer: que é o romance “mais inspirado” do autor; que é notório o paralelo com “Memórias Póstumas de Brás Cubas” e “Dom Casmurro”, de Machado de Assis; que a ideia para o livro nasceu de “O Velho Francisco”, uma antiga canção de Chico Buarque. Independentemente de em alguns casos haver a concordância do autor, o que a nós verdadeiramente interessa é o lirismo que emana das pouco mais de 200 páginas do livro: começa-se a ler de mansinho e a páginas tantas já não se consegue largar.


O livro é todo ele um monólogo delirante feito das memórias de Eulálio, contadas a toda a sorte de ouvintes que, voluntária ou involuntariamente, com ele se cruzam no hospital onde está acamado. Eulálio é descendente dos Assumpção – Assumpção com ‘p’, que o contrário é nome de ralé e o centenário Eulálio é tetraneto de combatente português contra as tropas de Napoleão, trineto de ilustre frequentador da corte de D. João VI, bisneto de barão negreiro, neto de abolicionista e filho de senador. Mas se Eulálio não comete erros na história dos seus ascendentes familiares, já a sequência de acontecimentos que acompanha os descendentes é traída por uma memória difusa, onde as cronologias se misturam e as histórias de filhos, netos e bisnetos se confundem, talvez a fazer esquecer que é em si que a decadência começa. Primeiro com Matilde, a heroína ausente da história e o grande amor de Eulálio, que cedo o abandona deixando-lhe uma filha, passando depois pelas gerações seguintes e culminando no bisneto traficante de drogas; bisneto ou tetraneto, porque aqui já os parentescos se confundem: “Aquela que veio me ver, ninguém acredita, é minha filha. Ficou torta assim e destrambelhada por causa do filho. Ou neto, agora não sei direito se o rapaz era meu neto ou tataraneto ou o quê. Ao passo que o tempo futuro se estreita, as pessoas mais novas têm de se amontoar de qualquer jeito num canto da minha cabeça”.


Triste história, contada em tão doces palavras.

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